A Segunda Xícara
Os dias ficaram mais longos, mais lentos. Não importa se é hora de levantar e tomar banho. Não vou mais a correr para apanhar o metrô. Agora eu converso com minha segunda xícara de café.
A segunda porque agora temos tempo e ela me faz companhia. Ela sequer teve oportunidade algum dia de existir antes da pandemia.
A casa ainda dorme e eu converso com ela. A conversa se desenrola enquanto olhamos as árvores frondosas da Quinta do Cisne que ficam em frente ao meu apartamento. Sinto vontade de caminhar por baixo delas, mas só posso admirá-las. Que bom que tenho um quadro vivo de muito verde! Mas sinto saudades da brisa que corre lá fora, só posso sentir do metro quadrado de varanda.
A segunda xícara partilha comigo a vista verde no sol primaveril. Refletimos sobre os dias de isolamento, do medo, falamos muito da impotência que me resta junto com a tentativa de ter paciência.
A segunda xícara me recorda os planos adiados, das férias em família canceladas com o vôo que nunca chegou e me vê chorar. E assim ela se vira derramando seu adoçado café em minha boca e diz:
– Então, você achava que dominava o tempo? Ou dominava teus atos? Não querida, doce ilusão! Põe-te a traçar rumos novos dentro da tua cabeça. O que te preenche?
– Não sei (lágrimas travadas na porta dos olhos). Me recuso a chorar pela falta de domínio da minha própria vida. Não estava nos meus planos refazer novos planos. Desengavetar o que ficou à minha espera e eu nem sabia!
– Mas é o que te resta dentro desse concreto. Ou usa tua cabeça que hoje é teu único mundo onde é permitido caminhar, ou melhor, voar. Só assim consegue saltar essas paredes!
E assim foram dias e dias de muita conversa. A segunda xícara nunca me abandonou mesmo quando o mundo parecia pausado e os dias iguais.
Foram nesses momentos pequenos e pingados que encontrei minhas novas versões, recheadas de inquietudes, crises, risos e lágrimas. Foi na segunda xícara que encontrei outros mundos meus, que nenhum vírus penetrou. Foi preciso mergulhar fundo, e isso eu sei bem fazer!
A segunda xícara me ensinou sobre o tempo. O tempo que se perdia em passadas largas e apressadas. Tempo do banho rápido, dos afazeres diários no automático, do café engolido, do tempo morrido.
A segunda xícara aguçou meus ouvidos ao canto dos pássaros, a avenida calada, a conversa do vento na varanda e aos burburinhos dos meus pensamentos!
Obs: Esse texto foi desenvolvido como exercício para o curso de Escrita Criativa “Os mundos de dentro”, módulo inspirado na obra de Osman Lins.